
Fonte: Recessos da memória. Data: 1994. Local: Fortaleza. Experiência: Projeção psíquica. Tipo: Encontro. Relevância: 6.
Um feroz carrossel
O ano de 1993 foi um dos mais intensos de toda a minha vida. Estudei em um colégio batista conservador, e, na sala do 1º ano do Ensino Médio (antigo Científico), conheci um punhado de pessoas fabulosas e vivi uma deslumbrante epopeia emocional. Finalmente, fui expulso por uma série de motivos, incluindo “incitação à desordem”.
Em 1994, após a expulsão do Batista, fui para um outro colégio cristão ainda mais conservador, dessa vez católico. Lá, mantive uma postura mais calma e taciturna, concentrando-me nas aulas e me regozijando de quando em quando com pequenos escândalos, como a minha cabeça raspada, minha calça rasgada ou meus poemas sacrílegos. Este também foi um ano de intensas atividades “extraclasse”, incluindo um relacionamento poli amoroso altamente controverso.
Deixarei para outra ocasião o detalhamento das rebeldias e romances de minha adolescência, visto que o objetivo deste BLOG é, sobretudo, o relato fiel de minhas “aventuras psíquicas”.
Um encontro inusitado
Eu tinha 17 anos, estava no 2º ano do ensino médio (antigo científico), e já havia me decido por Artes Plásticas. Queria ser artista a todo o custo, de preferência desenhista de histórias em quadrinhos.
A parte mais movimentada do ano já havia passado, com todas as confusões emocionais típicas da idade (e algumas outras bem atípicas). A série trágica de eventos amorosos havia me deixado, no mínimo, traumatizado e com uma forte tendência à introspecção.
Já não buscava mais as velhas amizades, paqueras ou noitadas. Praticamente não almoçava, devorando todo o tipo de literatura que encontrasse pela casa e absorvendo-me na criação de pretensiosos desenhos e poemas.
Havia criado um universo mágico que batizei de “Canções da Terra Flutuante”, e terminara de preencher completamente um caderno de espiral dourada que muito em breve seria devorado pelo fogo em um dramático sacrifício.
Apesar do isolamento, eu ainda mantinha contato com um amigo da época do Batista, o Marcelo.
O Marcelo era um rapaz branco e solene, mais jovem que eu, com os cabelos até o ombro, óculos e uma resposta perspicaz para todas as perguntas possíveis. Num dos primeiros meses do ano letivo de 1993, ele me convidou para o show de uma banda de metal local, a “Darkside”. Naquele galpão imundo, tomamos muita cachaça direto da garrafa e nos tornamos melhores amigos.
Era de nosso costume dormirmos um na casa do outro, às vezes por vários fins de semana consecutivos. A minha mãe sempre gostava muito de quando ele vinha, e lançava para nós um sorriso de cumplicidade como se dissesse: “Vocês formam um belo casal”.
Em meio a saraivadas intermináveis de cigarros, arriscávamos uma leitura de Kant, Hegel, Freud ou literatura russa, jogávamos xadrez, apreciávamos música clássica… Declamávamos poemas espontâneos como se fossem preciosidades dignas de um Rimbaud ou Baudelaire. Também curtíamos quadrinhos da “Marvel” e “DC Vertigo”, e nos alegrava a tortura mental de videogames como “Battletoads” e “King of Fighters”.
Já fazia uns dois meses que eu não via o Marcelo quando um rumor começou a circular nos jantares. Era sobre a casa assombrada da minha tia Neném.
Morávamos em um bairro de ruas estreitas e casas coladas umas nas outras, a Cidade 2000. A nossa casa era ampla, toda pintada de branco-neve e ficava em um dos limítrofes, próxima a uma quadra, dunas e um bosque.
A tia Neném havia se mudado de Olinda para Fortaleza, com seus filhos Emiliano, de 15, e Júlia, de 11, a minha avó e outras duas tias-velhas para montar um empreendimento de costura. Alugaram uma casa amarela na Cidade 2000, próxima à nossa casa branca e à igreja católica. Isso era tudo o que eu sabia.
Alguns meses depois, quando os rumores de casa mal-assombrada já estavam a todo o vapor, a minha avó, as tias-velhas, Neném, Emiliano e Júlia já haviam voltado para Olinda.
“Como assim a casa é assombrada, mãe?”, perguntei, em um modesto jantar de macarrão com sardinha. “Elas ficavam ouvindo coisas, no meio da noite! A sua avó se levantava para ver o que era e nunca conseguiram descobrir… todo mundo tinha pesadelos e começaram a rezar sempre antes de dormir! Chamaram até o padre, mas nada adiantou!”.
A minha mãe era uma mulher esclarecida. Arquiteta, com vários dotes artísticos como pintura e piano, e uma leitora assídua de filosofia. O meu padrasto Paulo era um engenheiro militante de esquerda e, naturalmente, ateu.
“Que besteira essa coisa de tua mãe e Neném, Ceiça! Tava dando certo a empresa de costura! Desistir de tudo por causa de fantasma, sinceramente!”.
Fiquei sabendo que a casa já havia sido praticamente esvaziada, mas ainda não devolvida ao proprietário. De vez em quando, o Chiquinho pegava a chave com o Paulo e ia passar a noite lá fazendo “deus-sabe-o-que”.
Alguns dias depois, falei com o Chiquinho sobre o assunto e ele disse que realmente o clima lá era muito pesado, que tinha parado de frequentar e aproveitou para me recomendar a nunca botar os pés na “casa mal-assombrada da Neném”.
Era o convite que faltava para me atiçar! Imediatamente liguei para o Marcelo, contei-lhe toda a história e o chamei para passar a noite lá e (por que não?) fazer a “brincadeira do copo”. Ele topou na hora.
No próximo fim de semana, eu já havia conseguido a chave apesar do contragosto da minha mãe. O Paulo apenas ria e dizia “deixa ele!”, em um reconfortante ceticismo.
O Marcelo chegou no fim da tarde. Surrupiamos do meu irmãozinho Fábio algumas canetas hidrocor, papel e tesoura. Desenhamos e recortamos letras, números, um “sim” e um “não”, criando uma série de pequenos cartões. Era a nossa tábua oui-ja. Fomos até a cozinha, bebemos água e pegamos um copo americano.
Lá na “casa amarela de Neném” haviam sido deixados um colchão e uma rede, conforto além do necessário para adolescentes acostumados a virar a noite em mesas de bar, pedras na beira da praia e sarjetas. Com a roupa do corpo, os nossos cigarros e tudo o mais que precisávamos em uma mochila, partimos.
Passamos no mercadinho onde o Paulo tinha conta e garantimos mais um isqueiro, duas carteiras de cigarro, uma coca e biscoitos. Logo mais à frente, no fim da avenida onde ficava a igreja católica e o colégio público, dobramos à esquerda em uma ruazinha estreita (como todas as outras) e chegamos à “casa amarela mal-assombrada da Neném”.
O céu estava dando os seus últimos suspiros de claridade quando tirei a chave do bolso. A casinha não tinha nada de especial: Uma fachada careta só com porta e janela. E era realmente amarela, de um amarelo escuro e manchado de chuva. Fez-se um silencio reverente enquanto eu abria a porta. Entramos.
A sala estava quase vazia, apenas com duas caixas de papelão cheias de pedaços de tecido e linhas. Parecia maior por dentro do que por fora. Nos dois quartos, também nada de interessante além de caixas com retalhos coloridos e algumas bolotas de poeira aqui e ali. No banheiro, ainda bem que tinha água e um pedaço de sabão amarelo.
Sim, havia um clima estranho, meio desagradável. É difícil explicar… Era como um tipo de eletricidade estática, um magnetismo frio e ondulante, bem suave, às vezes acompanhado de um zumbido bem fininho. Talvez fosse apenas psicológico.
Passamos boa parte da noite conversando as conversas de sempre: As meninas do Batista, as meninas do meu novo colégio (o Christus), teorias filosóficas individualistas e comunistas, poesia, música, desenho, quadrinhos e videogame.
De quando em quando, sentíamos calafrios, arrepios, principalmente quando circulávamos pela sala ou íamos ao banheiro. Encaramos com naturalidade.
A certa altura, os assuntos foram esfriando e decidimos fazer a “brincadeira do copo”. Até então, todas as minhas tentativas de “brincadeira do copo” haviam sido frustradas, e eu não esperava grandes coisas naquela noite.
“Devíamos ter trazido uma vela!”, disse eu. “Que nada!”, disse o Marcelo, “A gente apaga a luz da sala e deixa a do banheiro acesa!”. E assim fizemos.
Sentamo-nos no chão, um de frente para o outro, bem no meio da sala. Montamos no chão a tábua oui-ja com os cartões de letras recortados. Fez-se aquele mesmo silêncio reverente.
“Devemos cantar uma música ou algo assim?”, disse eu, “Ouvi falar que é bom para se preparar”.
O Marcelo fez uma expressão de desagrado, e resolvi deixar essa ideia pra lá. Cada um colocou o indicador no fundo do copo, como havíamos combinado previamente. “Tem alguém aí?…” Perguntei.
Esperamos alguns instantes, e nada. Havia aquela sensação no ar, como uma pressão atmosférica, uma vibração que alterava um pouco os sentidos. “Tem alguém aí?…” Perguntei novamente. Respiramos e continuamos cada um com seu dedo sobre o fundo do copo.
O Marcelo olhava para baixo, relaxado. A vibração do “clima estranho” deu uma suavizada. Eu não sentia mais o zumbido ou os arrepios. Perguntei mais uma vez: “Tem alguém aí?…”, e nada. Tudo continuou tranquilo.
Respirei fundo e fechei os olhos. Eu já estava sem paciência, e disse: “Tudo bem. Se você não quer falar pelo copo, pode entrar em mim e falar através de mim!”.
Continuamos por alguns minutos, e nada. Olhamos um para o outro e finalmente cada um retirou o seu dedo de cima do copo. “Você sentiu alguma coisa?”, perguntei. “Não, e você?”, respondeu Marcelo. “Também não”, concluí, “acho que deveríamos ter cantado uma música ou ter feito alguma outra coisa”.
“Que nada, meu irmão, é isso mesmo…” Disse o Marcelo, indiferente. Vimos um movimento no canto da sala. Era apenas uma bolota de poeira, rolando vagarosamente, movida por uma brisa suave, a mesma que passava de vez em quando vinda da cozinha.
Colocamos de lado os cartões de tábua oui-ja e o copo. Fumamos mais alguns cigarros, terminamos o biscoito e a coca-cola.
Resolvemos deixar a luz do banheiro ligada. O Marcelo acomodou-se no colchão, e eu, na rede. Continuamos algumas conversas pendentes (algumas delas continuam pendentes até o dia de hoje, principalmente aquela sobre “as meninas do Batista”).
O Marcelo já estava esparramado naquele colchão velho, com os braços dobrados de um jeito estranho. A rede estava boa. Me acomodei meio de lado e, estranhamente rápido, adormeci.
Atravessei a rede suavemente, mergulhando para baixo na horizontal em um ar denso, quase gelatinoso. Ouvia um tilintar abafado, como de cristais ou porcelanas.
Neste mesmo segundo, absolutamente lúcido, entendi que se tratava de mais uma daquelas experiências que chamavam de “desdobramento” ou “projeção astral”.
Girei e pousei no chão, agachado. Era a mesma sala, mas estava diferente, com uma espécie de película cinzenta por cima de todas as coisas.
Me levantei na penumbra. As paredes estavam escurecidas, com manchas de chuva ainda mais dramáticas que as da fachada. Ressoava na atmosfera um zunido, uma vibração insólita.
Flutuavam ao redor esferas transparentes, fluorescentes, coloridas e disformes.
O corredor estava mergulhado em trevas. De sua parte mais escura, várias das esferas luminescentes se concentravam. Me distraí por um instante, e, quando olhei novamente para o corredor, “ele” já estava lá.
Era um ser disforme e corpulento, com uma grande cabeça projetada para frente. O seu corpo parecia feito de um condensado daquelas luzes flutuantes. O seu contorno era borrado, embaçado. Caminhou em minha direção, inclinando-se para um lado e para o outro, e pude distinguir melhor a sua forma. Era um dinossauro rosa.
A princípio, não parecia ameaçador, muito pelo contrário. Estendeu o seu curto braço, em um gesto convidativo. A sua fosforescência cor-de-rosa e transparente me causava um misto de estranhamento e fascínio.
Ainda estava a alguns passos de distância. Fitei a sua cabeça, enorme e retangular como uma caixa de papelão. Parecia sorrir, mas com aquela expressão indiferente, muito comum aos répteis. Seus olhos eram buracos escuros e insondáveis.
Quando ele realmente chegou perto, me senti intimidado. Recuei e disse: “Não! Não serei o seu amigo!” Ele continuou avançando, escorreguei, caí no chão e o vi, debaixo para cima, passando solenemente como se eu não fosse digno de sua atenção.
Acordei na rede, suando frio. Agora sim, eu sentia a totalidade do “clima pesado” sobre o qual o Chiquinho tanto me alertara. Havia no ar um zumbido, um magnetismo semelhante àquele do “outro mundo”.
Sim, “ele” estava ali. Naquela casa, naquela sala, naquele momento. O dinossauro.
Eu olhava para um lado e para o outro, ainda em choque. Mas logo um outro sentimento cresceu dentro de mim: Indignação. Comecei a ficar com raiva daquela criatura, pois me sentia vulnerável, ameaçado, e não sabia o que fazer. Sentia raiva por mim, por minha avó e por minhas tias.
O Marcelo estava largado pesadamente no colchão. Entendi que não deveria acordá-lo. “Agora é pessoal!”, pensei. Algo precisava ser feito, eu só não sabia exatamente o quê.
Faltavam-me referências. Como eu poderia combater um espírito? Naquela época, eu ainda não conhecia os livros de ocultismo, magia e bruxaria que iriam me fascinar dali há alguns anos.
Veio-me à mente o “padre do Exorcista”, mas não me pareceu apropriado. Eu não tinha “fé”, e sabia disso. Foi quando lembrei de um personagem dos quadrinhos da DC Vertigo: John Constantine. Ele sim, era o modelo perfeito para a situação: Maltrapilho, bêbado, fumante, sarcástico… e ainda assim, um mago que enxotava demônios como se fossem cachorros sarnentos.
Eu estava com a minha calça jeans rasgada no joelho, descalço, com uma camisa branca e velha, com a gola cortada à tesoura. Eu não gostava de nada me sufocando. Me encostei na parede como se fosse um integrante dos Ramones. Acendi um cigarro, soltei o meu risinho mais debochado, e disse:
“Quem você pensa que é, seu dinossauro de merda?! Não mexa comigo! Criatura desengonçada! Patética! É melhor você ir embora enquanto ainda tem chance! Eu vou te destruir!”
Enquanto eu falava, ainda apoiado na parede, eu apontava para lá e para cá com o cigarro. Quem sabe eu pudesse feri-lo com a brasa?
O que começou como um blefe, logo me trouxe uma sensação bem real de segurança e poder. E dobrei a aposta:
“Eu sou um mago! Você não me conhece! Eu vou te estraçalhar! Criatura patética! Vou te mandar de volta pro inferno! Eu sou o seu mestre! Vá embora agora! Me obedeça ou vai se arrepender!”
Eu estendia o braço para frente, o cigarro aceso e brilhante, a fumaça espiralada, a expressão decidida e arrogante. Repeti algumas vezes tais palavras, com algumas variações, mas a minha criatividade se esgotara. Resolvi, então, guardar silêncio, fazer cara de mau e me manter firme na postura de “bruxo rockstar”.
Alguns minutos depois, o cigarro estava acabando. O Marcelo continuava esparramado na mesma posição. Percebi que o ambiente estava bem mais leve. Amassei a bituca dentro do copo americano, e voltei a dormir.
Assista a este relato em vídeo!
Confira os desenhos deste e de outros REGISTROS MÍSTICOS no meu Instagram!

Quer receber de graça o PDF da minha HQ de 10 páginas sobre projeção psíquica?

Basta me adiconar e mandar um “quero” no WhatsApp que eu envio para você!
✅ Meu número: 81 996337156
Aprenda a expressar a sua verdade através do desenho!
Com o curso online “A Magia do Desenho” você irá se tornar um MESTRE nesta arte, e poderá mostrar ao mundo as suas visões e ideais, em um caminho de auto-expressão e desenvolvimento pessoal!
